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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Solilógio 1: Então eia! Adiante!


Ego - Eu tenho um desejo, um verdadeiro sonho: dedicar-me ao labor filosófico. Quer por meio da escrita, quer pela oralidade. Quer vivendo, quer trabalhando. Claro que trabalhar está contido em viver, mas é que nem todas as profissões exigem uma integral dedicação quanto esta.
Alter Ego - E por que tu desejas isso?
E - Por causa daquilo que eu acredito ser o papel do filósofo: superar as aparências, não viver como o comum dos homens que dormem. Antes, buscar a sabedoria. E não no intuito de que saiba mais que todos, ou mesmo, para estar arrogantemente acima deles. Afinal, como morre o tolo morre o sábio.
A - Ora, para que então pensas que seja bom buscar a sabedoria?
E - Eu penso que a sabedoria deve ser buscada tão somente por causa dela mesma. Apenas porque é bela. Há um prazer em amá-la que me toma tão profundamente, não é só intelectual, é integral. Arrebata-me de tal forma que desejo encontrá-la em cada recôndito dessa existência. Quando faço isso sinto como se um calor tão ardente quanto o do sol, tão claro como o seu surgir na alvorada, invadisse o meu ser. Quando vou ao seu encontro eu sei que esse é o único mergulho para o qual eu nasci. É de tal forma que dedicar-me a qualquer outra coisa me enjoa.
A - Mas tu mesmo dissestes que é um prazer encontrá-la em cada recôndito da existência. Por acaso dissestes isso por imaginar que a sabedoria não se pode encontrar apenas na acadêmia?
E - De fato, é assim que penso.
A - Em que outros lugares é possível encontrá-la?
E - A sabedoria se revela onde há espírito, ou seja: onde quer que haja um ser capaz de apropriação em sua interioridade, de conciliar o movimento dos astros com seu anseio por bem-aventurança.
A - Mas então, não há qualquer ocasião debaixo do sol a qual tu não consideres útil para quem ama a sabedoria. Não é isso?
E - Certamente.
A - Então, porque dizes que fazer qualquer outra coisa que não a dedicação a ela te enjoaria? Acaso, há um momento em que poderias não te dedicares a ela? Ou seja, porque tens de ser um filósofo? Porque não fazer um concurso público? Afinal, ter estabilidade financeira e nem tua ida às provas te desviaria do caminho da Bem-aventurança.
E - Ora... Eu sei que mesmo que eu estivesse lá isso não seria desculpa para que eu não me dedicasse à sabedoria. Mas, da mesma forma, não desculparia a alguém que tivesse fome e não preparasse o seu alimento, ou que tendo uma alma não queira saber do Espírito. Todavia, haverá alguém que amando a gastronomia, tornar-se-á um  gastrônomo. Assim sendo, embora a todos também não seja desculpável que não amem ao saber, a mim isso afeta de tal modo que quero tornar-me um filósofo.
A - Mas há uma interessante diferença. Porque na verdade, ao gastrônomo compete o trabalho da cozinha. Assim sendo, é-lhes necessário dedicarem-se a um comodo, a um ambiente, por determinado tempo. Mas a sabedoria por estar em todo lugar possibilita ser encontrada tanto na cozinha, na sala de aula ou no interior de um cômodo. Assim sendo, dela poderias ocupar-te ainda que fosses um técnico judiciário do Supremo Tribunal Federal, ou até um acadêmico.
E - Permites que eu busque uma ilustração que talvez faculte-me dizer o que pretendo? É que agora não encontro bem as palavras.
A - Claro, adiante.
E - A biologia é o estudo da vida?
A - Certamente.
E - Mas a biologia não é a vida, mas o estudo da vida.
A - Concedo.
E - Então também a biologia é algo que surge apenas através de um espírito que está lá para analisar e sistematizar os dados que colhe. Não é isso?
A - Como poderia ser de outra forma?
E - Mas a vida se encontra em praticamente todos os nossos cômodos, mas sem dúvida alguma: também nos órgãos públicos, por incrível que pareça, as pessoas que lá trabalham são vivas.
A - Tome cuidado com essas alfinetadas, sabes que neste país é inevitável acabar caindo nas mãos de um funcionário público. Por exemplo, estás precisando da segunda via do seu Certificado de Alistamento Militar.
E - Bem... fazer o quê? Eu não penso mesmo que todos os funcionários sejam assim tão parados: mas infelizmente, não é verdade sobre a maioria. E tanto é que a maioria dos que sonham com concursos apenas o fazem porque desejam ser tão sossegados quanto os que lá estão. Nunca vi alguém dizer que deseja fazer um concurso público para trabalhar ou para servir à pátria, mas apenas para ganhar grandes salários e trabalhar pouco. Assim sendo, é necessário que recebam algumas alfinetadas.
A - … prossigamos com o nosso assunto.  Eu concedo que há gente viva nos órgãos públicos...
E - Então por acaso alguém se tornaria um biólogo apenas de ir para lá todos os dias e de contemplar os animais que lá trabalham?
A - Agora passastes do limite, alguém poderá te processar. Porque falas que são animais os que lá trabalham?
E - Não te preocupes. Estou falando naquele sentido em que o S. Anselmo de Cantuária apresentou na obra "O Gramático". Aqui, animal é substância sensível animada. Eu usei o termo para ressaltar exatamente esse aspecto, o da vida.
A - Então é certo. Mas é errado que se tornaria biólogo alguém que apenas os contemplasse.
E - Mas por acaso não acumularia informações necessariamente úteis a respeito dos homens? Por acaso apenas de observá-los em qualquer lugar não saberia o que comem? Vivendo entre eles e sendo um deles, não poderia dizer nada sobre seus corpos? E sobre o tempo de vida que geralmente vivem?
A - Sim, poderia.
E - Mas então essa pessoa não poderia ser chamada de bióloga por haver acumulado um tal saber a respeito da vida?
A - Não.
E - Por quê?
A - Porque ela possuiria um certo saber, porém fragmentado. Mas a Biologia pressupõe sistematização, uma organização que gere um edifício sólido a partir de uma fundamentação epistemológica. A partir de uma metodologia rígida, de um objeto de pesquisa. Além disso, o saber do homem que simplesmente possua experiência ampla com os diversos animais deste planeta seria algo não muito seguro, talvez muito eficaz porém pouco eficiente: isso  porque não compreende de fato os mecanismos daquilo com que lida. Já o biólogo possui maior lucidez, embora, talvez não conheça os mesmos fenômenos que o homem comum.
E - Concordo plenamente. E por acaso a experiência de alguém que lide também sem uma pretensão mais rígida com a sabedoria, isto é: acumulando experiências sem importar-se com a sua devida articulação, esse também não deveria ser chamado de filósofo. É necessário que além de buscar o saber que se busque de forma organizada, é necessário saber então distinguir os saberes para que torne-se claro o seu lugar, sua utilidade, sua participação no todo. É necessário portanto ter olhos, ouvidos, tatos e paladar devidamente afinados. Ora, esse campo que é muito mais complexo que o da Biologia, esse caminho que todos morrem sem conseguir trilhar, exige tamanha perícia como nem a de um cirurgião. É então necessário uma dedicação tão profunda quanto a que o biólogo dispensa aos seus estudos.
A - Mas então, o que tu dirias de Marco Aurélio? Não foi ele um filósofo?
E - Sim, foi.
A - Mas não era Imperador? E não ia às guerras e administrava Roma? Por acaso, como funcionário público teria tanto mais ocupações que ele ao ponto de não poder se dedicar ao mesmo que ele se dedicou?
E - Bem, na verdade, não seria impossível. Mas, caso não me engane, creio que o próprio Sêneca disse que o Imperador almejava muito dedicar-se integralmente a este outro e verdadeiro labor, o filosófico. Não seria impossível trabalhar num órgão público, afim de receber o salário todo mês, sendo estável e etc. Mas, isso não me alegra, não almejo. E por mais que seja mais difícil trilhar o caminho de agora buscar a formação filosófica de uma maneira mais focada, de buscar ganhar experiências dando aulas mesmo e etc. Eu prefiro.
A - Então, muito mais que qualquer motivo racional, o que te move é teu desejo.
E - Sim, é meu desejo. Mas nem por isso é irrazoável.
A - Bem, não o é. Mas, tens de ter certeza. Estas a escolher o caminho mais difícil e é necessário que de uma vez por todas não voltes para trás. É importante ir adiante. Chega de ser vacilante. Você já é um adulto e é tempo de ter um rumo.
E - É verdade. De agora em diante, não volto atrás. Pode ser que no futuro eu queira experimentar qualquer outra coisa, mas meu objetivo é tornar-me catedrático de Filosofia. Sim, almejo a universidade.
A - Então eia! Adiante!

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