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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Solilóquio 3: Uma veia no teu cérebro pode estourar a qualquer momento!


Alter Ego - Falta ideia do que escrever?
Ego - Pois é, basta não ser a hora de escrever e pronto, as ideias me agridem. Fervem, gritam, eu querendo estudar ou fazer outra coisa e não dão trégua... aí eu me sento e quero dedicar-me a elas e pronto. Somem.  Isso me lembra até outra cena.
A - Qual?
E - Lembra aquela garoto de quem minha avó cuida.
A - Você falou dele no primeiro diálogo? Não, foi em outro texto.
E - É verdade. Mas então, ele tem exatamente essa mania. Pede comida ou água, insiste até que alguém dê e, finalmente, quando alguém estende a mão com aquilo que foi rogado, rejeita dizendo que não quer.
A - Ora... será que nesse comportamento encontramos alguma pista para a malcriação das suas ideias?
E - Não sei, mas já que estou pouco criativo hoje, então, prossigamos.
A - Você não devia pensar dessa maneira, "já que...", isso é duma debilidade sem fim. Como uma existência finita pode ousar dizer "já que...": uma veia no teu cérebro pode estourar a qualquer momento... a tua vida está na mão de Deus que é o único que existe de fato: você é uma coisa relativa. Nuvem passageira, flor que nasce de manhã e murcha pela tarde. É bom abrir os olhos, ou se abre para a eternidade ou morrerá sem nunca ter vivido.
E - Você tem toda razão. Não irei nesse "já que" e sim com a mentalidade do sábio que orientou a que todo trabalho fosse realizado com primor, porque lá, na cova para onde desceremos: não há nenhum labor. Vamos então, enquanto é dia, a noite já vem.
A - Isso é que é falar! Voltemos agora à contemplação daquele garoto. Será que também é um garoto dentro de ti que faz essas malcriações de espernear e desejar num momento para noutro rejeitar?
E - Talvez sim, talvez seja afinal ainda uma meninice em mim.
A - E aquilo que dizia o Sto Agostinho nas Confissões? Lembra como ele mesmo disse que as crianças choram numa tentativa de tiranizar os adultos?
E - Recordo.
A - É assim que, confessa o grande Pai da Igreja, quando lhes é negado o acesso a algo, choram e berram, numa forma de torturar os adultos.
E - De uma forma verdadeiramente irritante.
A - E assim agem sem qualquer análise do mérito daquilo que se lhes nega. Ainda que um adulto afaste aquilo que lhes faria mal elas ainda se revoltam.
E - Assim é.
A - Portanto, querem impor sua própria vontade a todo custo.
E - Realmente.
A - Não é algo parecido que lhe ocorre? Quando está tentando ler, ou trabalhar, ou fazendo qualquer outra coisa, as suas ideias não choram, esperneiam e exigem a todo custo que sejam atendidas?
E - É exatamente.
A - Aquele garoto, porém, de quem sua avó cuida, quando vai receber aquilo pelo que esperneou, rejeita, fazendo do esforço dos adultos vãos.
E - Perfeitamente.
A - Não seria isso então apenas mais uma forma de tirania? Não vem a mente os atos de alguém que é dono de tudo, das pessoas, do seu tempo e de seus recursos? Alguém que se acha no direito de utilizá-los como bem quiser?
E - Mas será que não seria apenas carência afetiva?
A - Carência certamente o é. Aliás, é exatamente isso, é o desejo, ou a vontade de potência, o problema é que está sem limites.
E - Mas como limitar os desejos de uma criança? Negando-lhe o que quer? Simplesmente virando as costas? Não deve se dispensar um trato diferente do que um adulto receberia?
A - Na verdade, a criança deve primeiro contar com a presença de alguém em suas vidas, que as ame de verdade. E desse amor deve se originar o "não" e o "sim". Deve-se mirar o bem do pequenino. Nem matando seu desejo pelo excesso da negação e tão pouco permitindo que acredite ser um deus onipotente. A criança deve saber que quem governa ela não são seus ímpetos, nem os dos adultos: antes, é tudo feito conforme a razão. Para que a vida torne-se longa, boa e bela.
E - Vem a minha mente agora os argumentos de Platão, a respeito das formas de governo. Lá na República, ele fala que são quatro: A monarquia, a aristocracia, a democracia e a tirania.
A - E por que isso lhe veio à mente?
E - É que os atos da criança me lembram, sem dúvida, a tirania. Ela simplesmente quer impor suas vontades. É o pior tipo de governo segundo o Filósofo. E seria esse o caso se um adulto não devesse permitir que a criança reine, caso isso devesse ser cumprido por uma simples imposição arbitrária de vontade, mas, por meio da razão, na verdade ocorreu-me que assim estávamos na melhor forma de governo, a monarquia. Dessa forma livramo-nos de  que entre criança e adulto ocorra uma mera luta por poder, que não passaria de um despotismo.
A - Apenas por curiosidade, como seria a democracia?
E - Seria um pouco melhor, mas aí adulto e criança seriam iguais. Tudo seria escolhido pelo voto, ignorando-se que ao adulto pertence a sabedoria e que a criança na verdade não sabe de nada. Cada um teria o mesmo valor para decidirem o destino.
A - Que absurdo seria! Mas e se fosse uma aristocracia?
E - Talvez aí ocorra o governo do adulto, que é a "elite". É diferente porque não se é governado mais pelos vícios e pelo despotismo como na tirania. Mas agora acontece que a criança é conduzida segundo a honra, a grandeza, pelos valores do adulto. Esse não é um mau governo. Mas a questão é que o outro é ainda melhor.
A - A monarquia?
E - Sim. Nela nem a criança e nem o adulto governam, mas apenas a razão. É confuso porque aqui a aristocracia ficou parecendo a monarquia, já que o adulto administraria conforme sua melhor aptidão para o saber, por causa da sua já desenvolvida fisiologia e por causa da já acumulada experiência de vida. A adaptação é difícil de se operar porque estamos tratando apenas com esse par, a criança e o adulto. Mas na verdade, parece-me que a aristocracia tem a ver com o governo daqueles que demonstram maior valor, honra, destreza. Mas o rei, segundo o modelo platônico, é o rei-filósofo. É aquele que ama a sabedoria. Logo, ali o referencial não é ele mesmo, mas sim a verdade. Quando é assim que acontece, quando a sabedoria é que tudo orienta, então o adulto olha para a razão e busca julgar a si mesmo e a criança com equidade.
A - Mas retornando ao nosso assunto, ficou dito que para aquela criança era necessário o sim e o não que decorressem do amor. Certo?
E - Certo.
A - E a isto tu julgas ser sábio ou tolo?
E - Muitíssimo sábio.
A - Então, é necessário que a tirania seja ali vencida pela monarquia.
E - Corretamente. Mas meu caro, meu novo e velho amigo: peço perdão, mas preciso dormir.
A - Vá, boa noite. E se Deus assim conceder, amanhã continuaremos este trabalho.
E - Você dorme?
A - Vá dormir! Depois falamos.
E - Isso é um não?
A -
E - Parou de falar comigo?
A -
E - então tá, tchau.


A-.

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