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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Solilóquio 4 - Ainda sobre o comportamento das minhas ideias


Alter Ego - Olá, você demorou uns três dias para voltar a escrever. Aliás, acho que mais, talvez até quatro. O que ocorreu?


Ego - Eu até queria escrever, mas outras coisas simplesmente me impediram.


A - Então precisamos mesmo prosseguir no assunto do Solilóquio 3. Por que afinal, você parece mesmo refém da tirania.


E - Como assim? Sou um cidadão livre, vivo num Estado Democrático de Direito. Não estou sob o poder de nenhum tirano.


A - Mas, talvez o seu verdadeiro tirano esteja governando dentro de você mesmo Veja o que acabou de dizer: Que queria escrever, mas não pôde porque outras coisas o impediram de fazer.


E - Mas me explique uma coisa,  o que você quer dizer com “talvez o seu verdadeiro tirano esteja governando dentro de você mesmo”? Isso quer dizer que estou possuído por algum demônio?


A - Bem, para tentarmos alcançar esse entendimento é interessante que continuemos no ponto em que antes paramos. Vamos ver se você lembra de tudo? Faça aí uma síntese do diálogo até aqui.


E - Eu comecei o terceiro Solilóquio avisando que estava sem saber o que escrever, o que, não obstante, é algo contraditório. Tal tensão se encontra em que quando não é hora de escrever as ideias surgem e pulam alucinadamente na minha mente. Mal as controlo. Gritam, esperneiam e exigem minha atenção. Viro-me e pronto, somem! Essa cena me fez lembrar, contudo, de uma outra, a do garoto de quem minha avó cuida. Ele também ousa atentá-la esperneando, chorando e exigindo que se lhe dê comida. Quando então aquela senhora deixa os seus afazeres, vai a cozinha e prepara o que foi rogado, quando finalmente entrega ao pentelho: ele se recusa a comer. Percebemos então que provavelmente esta ação do garoto tem algo de tirânica. Uma imposição que não levava em consideração a liberdade do adulto. Ora, conforme o Sto Agostinho, esse é um comportamento típico das crianças. Refletindo, percebemos que para combater isso era necessário que surgisse do adulto uma postura tal que fosse amorosa, mas que ajudasse a criança a perceber os limites da sua própria vontade; ou seja, é necessário um adulto que saiba operar o "sim" e o "não".


A - Exatamente. Mas observe agora: também houve no diálogo anterior uma descrição das formas de governo observadas por Platão na sua obra conhecida por “A República”. Na verdade, seguindo tal esquema devemos entender que na tirania há a imposição de um único déspota: não é?


E - Do que eu lembro agora é exatamente isso.


A - E essa imposição vinda de um único tirano parece combinar com o caso do garoto com tua avó. Mas quando falamos das suas ideias o retrato é de várias pessoas dizendo cada uma a sua vontade nenhuma se impôs, contudo, não havia uma ordenação adequada desses impulsos. Isso não parece mais com uma democracia?


E - Olhando bem por esse ângulo sim. Então será que o que falta em mim é na verdade uma hierarquia?


A - Mas uma como a da tirania?


E - Não, nessa o poder surgiria a todo custo. Por guerra e derramamento de sangue de todos, não com base em qualquer critério, senão no que o poder de um único impulso, de uma única pessoa, ou as verdades de uma única ideia deveriam se estabelecer.


A - E como fazer então para que essa hierarquia surja como uma boa monarquia?


E - É necessário para isso que, em primeiro lugar, vivamos segundo aquele princípio do Platão, em que justiça é que cada um faça aquilo que lhe compete fazer. Assim sendo, cada coisa deve ser organizada em mim conforme o seu propósito, de acordo com o seu devido lugar no todo.


A - Percebe a tremenda tarefa que surge agora com a próxima pergunta?


E - Eu já vislumbrei e confesso que a preguiça já até me tentou segurar, mas vamos, prossiga: faça.


A - Então para que possa organizar cada coisa conforme a sua função, é necessário que se pergunte: O que há dentro de ti? Por que afinal, para organizar algo é necessário que se saiba a natureza daquilo com o que se opera. Assim é que não se pode organizar coisas perecíveis e imperecíveis da mesma forma, ou as frágeis e as mais resistentes e etc.


E - Certamente a resposta para isso não será totalmente dada aqui e vai levar a um próximo diálogo. Mas… acho que dentro de mim existem diversos fragmentos. Esses fragmentos são deixados aqui por causa da minha experiência com os diversos fenômenos da vida. Há vozes, cores, cheiros e imagens, há ainda previsões e lembranças, medos e alegrias, vícios e virtudes. Intenções, deveres, interesses e ódios. Mas na verdade… se eu olho bem, bem mesmo, estou vendo o mundo dentro de mim. Vejo meus pais, meus irmãos, parentes. Há locais por onde passei, há pessoas com quem me relacionei. Aqui dentro está até o meu próprio corpo. O meu pênis mesmo, esse tem ocupado realmente um amplo espaço. Vejo minhas mãos, minha barba. Sabe de uma coisa? Dentro de mim está o próprio universo.


A - Explique melhor o que você quer dizer. Parece que está pretendendo que a imagem das coisas que você tem dentro de si mesmo é o mesmo que as coisas.


E - Bem… acho que excedi já o tempo por hoje, mas amanhã é sem falta, juro… continuo o diálogo exatamente deste ponto.


A - Então até amanhã. Mas atente apenas para uma orientação: não se apavore se ainda não foi possível descobri como organizar a sua interioridade. Claro que é um pouco assustador ver o tempo passando e que não é possível esperar até estar pronto para viver. É necessário ir adiante e ler e viver porque há metas para serem cumpridas. Mas lembra que a vida é um presente e não deixe de apreciá-la, mesmo quando parecer que vai tudo mal. Sua existência não é uma equação a ser solucionada, é uma música sendo cantada, e a canção é para agradar a alma: até mesmo se for uma melodia triste.

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